Arquivos mensais: dezembro 2018

Como se fosse…

Tocou o despertador.

-Já ????!!!! Que droga!!!

Como se fosse pouco ter acordado no calor e segurança de seu quarto, num belo dia de sol, com saúde e diante de um novo dia nunca vivido, cheio de tantas possibilidades.

Bufando , desceu as escadas.

Como se fosse pouco ter pernas , corpo e coordenação perfeita.

Na mesa de café, irritou-se porque o café estava fraco e ainda mais quando percebeu que tinha esquecido a chave no andar de cima . Pensou em comer mais um paõzinho, mas desistiu.

Já estou gorda demais!

Como se fosse pouco ter uma mesa posta, café quente, pãozinho e um corpo são como o dela. No trabalho, diversas vezes xingou mentalmente o chefe, os colegas, o cliente, o relógio, que saco, ela não merecia aquilo!

Como se fosse pouco ter talento, inteligência, saúde, trabalho, um salário…

Resolveu almoçar no escritório mesmo, engoliu sua marmita na frente do computador já lamentando ter que preparar a marmita para o dia seguinte quando chegasse em casa.

Como se fosse pouco ter o que comer, aquela pausa, o sol que entrava pela vidraça , como se fosse tudo isso muito, muito pouco para ela.

No fim do dia ,já no carro, discutiu com o marido e desligou na cara dele. Será que ele não entendia que ela não tinha a menor paciência para aguentar a família dele ? e tinha outra coisa : ele andava insuportável, nunca mais a elogiava, não lhe fazia mais surpresas românticas, nem flores ele era capaz de trazer no aniversario!

Como se fosse pouco ter um companheiro que gostasse tanto dela , parceiro ponta firme, sempre a partilhar a vida com ela, na alegria e na tristeza.

Chegando em casa exausta , discutiu com a empregada pois o jantar ainda não estava pronto e reclamou com os filhos que ainda não tinham tomado banho e estavam na tv.

Quando o caçulinha disse que não havia feito a lição porque não entendeu, ela explodiu:

Só me faltava essaa !!!

Como se fosse pouco ter filhos sadios, um lar, tv, empregada. Sim, como se fosse pouco o privilegio de ser mãe daqueles meninos.

Nervosa, foi para o banho e deu um grito estressado.

Como se fosse pouco ver a agua quente e fria sair magicamente da torneira de seu banho privativo , correr pelo seu corpo, trazendo renovação.

Quando após o jantar finalmente sentou na tv, suspirou fundo e deu um soco silencioso na poltrona quando a empregada veio lhe avisar que sua mãe estava no telefone.

Aaahhhhhhh, bem agora !!!

Como se fosse pouco ter uma mãe querendo saber as novidades dela e das crianças e se ela melhorou da dor nos joelhos…

Na hora de dormir, tomou seu comprimido querendo apagar logo.

Como se fosse pouco poder estar viva aqui e agora.

Do outro lada da rua

“Odeio e amo. Talvez queiram saber o porquê. Desconheço, é assim que me sinto e isso dilacera-me.”

Ele estava parado na porta do restaurante deles. Com seus curtos cabelos loiros levemente molhados e bagunçados. Segurava um buquê de margaridas, flores com as quais ela não simpatizava tanto. Olhando de um lado para o outro. Às vezes, parando para checar seu celular. Começou a estalar seus dedos, como sempre fizera quando estava nervoso. Em seguida, encostou suas costas na parede de uma banca ao lado do restaurante e começou a mexer sua perna sem parar, hábito que, ela sempre odiou.

E ela ali, parada, do outro lado da rua, observando, imovél, seu coração adormecido à tanto tempo, de repente, despertara com sua imagem, que em um primeiro momento pareceu nunca ter mudado.

Um pequeno sorriso involuntário levantou suas leves rugas quando ela se lembrou de todas as vezes em que sentiu que tudo era perfeito ao lado dele; mas durou apenas um instante, meio segundo, meio segundo das lembranças boas, pois em seguida, todo resto veio à tona, as lembranças amargas, as quais ela preferia lembrar para que, de algum modo, se consolasse de que ele não valia toda aquela dor que parecia já ter se acomodado em seu peito. Ela preferia se agarrar às lembranças das inúmeras vezes em que ela gritara e rasgara as roupas dele por uma crise de ciúme. De todas as vezes que ficara checando seu celular repetitivamente a espera de uma mensagem sua. De como sofrera quando nāo sabia sua localizaçāo exata. Preferia lembrar de seus lábios como fonte de ofensas, das quais ela nunca se esquecera.

Finalmente, aquela expressāo de procupaçāo saiu de seu rosto e sua mordida nervosa no lábio transformara-se em um sorriso sincero e alegre. Ele a viu. Entregou o buquê se curvando e estendendo a māo. Ela riu de seu gesto dramático deu um rápido beijo em seus lábios e ficou admirando seus olhos marrom esverdeados que um dia ela conhecera tão bem.

Quando eles saíram daquele transe, abraçados andaram em direçāo à entrada do restaurante. Antes de passar pela porta, porém, talvez por acaso, por instinto ou destino, ele se virou rapidamente para trás. Por meia fraçāo de segundo os olhares deles encontraram-se, reconheceram-se, e mais uma vez, perderam-se.

Com as palavras nāo ditas entaladas na garganta dela, se perguntou se a história deles nāo teria um equívoco em seu último capítulo, se nāo devia lhe dizer algo, mas nāo, nāo fazia mais sentido, pois aquele olhar nāo lhe pertencia mais, o que apenas restara eram lembranças.

 

Autora: Bebel