Falta de sorte

 

Não gosto dessa palavra, mas não tem outra para usar nessa situação. Tive azar. Na garagem do meu prédio, entre tantos vizinhos simpáticos e agradáveis, minhas vagas são ao lado do casal mais esquisito não apenas do prédio, mas de todo o bairro, provavelmente de toda a cidade. Um de cada lado. Fui premiada.

Não cumprimentam ninguém. Nem eles, nem seus dois filhos adolescentes, que tudo indica estarem crescendo esquisitinhos como os pais. Uma vez encontrei toda a família voltando da missa, os quatro andando juntos numa rua perto de casa. Quis ser amigável, afinal vi aquelas pessoas saindo da igreja, presumidamente imantados de bondade e de amor ao próximo. Acreditei que mereciam essa chance de redenção depois de tantos silêncios embaraçosos na garagem. Longe do território onde somos inimigos achei que a civilidade iria prevalecer. “Boa tarde!”. Ainda esbocei um sorriso. Não houve resposta.

Ao longo dos anos foram inúmeros embates. Era rotineiro o casal me mandar cartas com cópia para o síndico do prédio, sempre me culpando por todos os problemas que seus carros apresentavam. Como eu era amiga do síndico, ele provavelmente rasgava as tais cartas, pois nunca recebi qualquer multa ou advertência.

Um dia recebi um orçamento de uma funilaria, para o conserto de um grande furo na lateral de um dos carros deles. Era um valor alto. Junto, mais uma carta que me acusava de ter provocado o tal furo. Dessa vez tive muito trabalho, preparando uma defesa baseada em fotos do furo, medido com uma trena, para provar que pela altura era impossível a minha porta ter causado aquele dano. O zelador segurou a trena para eu tirar a foto. Seu sapato inadvertidamente apareceu na foto e foi reconhecido, o que lhe valeu uma reprimenda do casal por ter me ajudado.

Coitado do síndico, dessa vez fui eu que levei a carta. Quando a vizinha foi reclamar, ele perdeu a paciência. “Porque a senhora não coloca um belo colchão para proteger o seu carro?” Era uma ironia, mas ela levou a sério. Meu calvário começava aí.

O casal comprou boias, dessas bem largas, usadas para atracar lanchas, para evitar que batam no píer. É importante dizer que meu prédio é antigo, as vagas demarcadas na garagem foram projetadas para carros pequenos. Os carros aumentaram consideravelmente de tamanho, as vagas não. O casal instalou duas boias em cada carro e a partir deste dia apenas consigo sair do meu carro de lado e prendendo a respiração, pois a minha porta quase não tem espaço para abrir.

Vivi conformada por muito tempo, até que um amigo foi me visitar e me incitou. Disse que eu não poderia concordar com aquilo, que era um absurdo, pois se todos no prédio colocassem boias ninguém conseguiria sair dos carros. Que meus direitos estavam sendo violados. Que era assim que as guerras começavam: tinha gente que só pegando numa arma para resolver a situação.

Não quis chegar a tanto, mas armei um plano. Ao lado da vaga da mulher tem uma parede. Voltei mais cedo para casa para chegar antes que ela na garagem. Coloquei meu carro estritamente dentro da minha vaga, porém bem rente à faixa, pois sabia que daquele jeito ela não teria como estacionar. Não haveria espaço suficiente para manobrar. Subi e fiquei (alegremente, confesso) esperando o interfone tocar.

Depois de alguns minutos, o porteiro me ligou a pedido da vizinha. Pedi que lhe mandasse um recado: eu estava dentro da minha vaga e nem que Jesus descesse na terra para me pedir, eu não mudaria o meu carro de lugar. Se ela chamasse a polícia, eles nada poderiam fazer. E dei a minha cartada final: disse que meu carro não sairia daquela posição até que se comprometessem a não usar mais as boias.

Deu certo. Por uma semana, entrei e sai normalmente do meu carro, sem nenhum sofrimento. Depois as boias voltaram. Não, eu não quero viver em guerra. Eu prefiro me apertar.

Vendo pelo lado bom: eu nunca mais posso nem pensar em deixar de fazer regime.

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