SONHANDO ACORDADO

São Paulo, 14 de Outubro de 2080.

Caro Fernando,

Boas notícias!

Salvamos mais um! O sujeito 509 foi encontrado recriando o que antigamente chamava-se de cama, enquanto rabiscava um papel. Estava alucinado, dizia que precisava deitar-se e ficar imóvel naquele objeto, com os olhos fechados.

Acho que ele era do tempo de antes, da época escura onde quase um terço da vida era gasto com sono. Disse estar preocupado com a raça humana, vocês acreditam nisso?

Mas já calei a sua boca. Agora é útil e produz tanto quanto os outros.

A parte engraçada está em um bilhete que encontramos no seu bolso. Eu guardei uma cópia, olha só.

 

Luís, 

Posso ser capturado a qualquer momento. Escrevo para você esse bilhete, esperando que possa decodificá-lo e fugir. Eles não entendem, não estavam aqui durante a epidemia. Mas eu estava, eu vi meus amigos tornarem-se monstros. Vou te contar um pouco de como foi.

Há muito tempo atrás, as pessoas dormiam. (A expectativa de vida era alta – 80 anos! – nada comparada aos 35 que temos hoje).  O sono era o único momento de paz, parecia um hiato obrigatório e crucial no roubo do nosso tempo pelo sistema. Até que foi contornado. Inventaram uma pílula que tirava o sono, a 24/7, versão anterior daquela que há hoje. 

No início foi uma maravilha.Como não dormíamos, a vida parecia eterna! O ditado “tempo é dinheiro” nunca foi tão verdadeiro como naquela época. Todos estávamos felizes, era o fim dos problemas. Poderíamos ter mais tempo livre, viver mais, trabalhar mais, ganhar mais e prosperar. A classe baixa finalmente conseguia adquirir objetos de luxo. Todos trabalhávamos incessantemente e cada vez mais enriquecíamos.  Viver e desfrutar ficava sempre para mais tarde, afinal, tínhamos tempo!

Claro, as pessoas endividavam-se de maneira que teriam que trabalhar sem pausas até o fim da vida. Claramente era esse o objetivo…

Porém, passado alguns meses, a falta de sono começou a afetar a população de maneira significante . Algumas pessoas perceberam que o sono não era uma mera perda de tempo, mas necessário. Ainda assim, já não era possível  a desvinculação da droga. Éramos física e psicologicamente dependentes. Ademais, quem tentasse sair do sistema seria marginalizado, excluído e perseguido até se render de volta, e é por isso que te escrevo esse bilhete.

A saúde geral da população ficou abalada, e o pior: a saúde mental, praticamente irreparável

Sonhando acordado, tantos indivíduos entraram em estado catatônico que chegaram a ficar assim durante dias. Além disso, como não dormiam, a sua memória não se consolidava, então logo esqueciam de quem realmente eram.  

  A dependência física e psíquica da pílula era tanta, que não tinha mais volta. As pessoas começaram a morrer. Outras ficaram loucas. Outras, mais loucas ainda, não percebiam o que estava acontecendo. Aprimoraram a pílula e, manipulando as pessoas por meio de suas emoções, disseminaram o discurso de que a vida sem sono era a melhor possível, mesmo que a saúde ficasse um pouco comprometida. 

Precisamos fa-

 

Bem, o bilhete pára por aí, pois foi quando encontramos e salvamos esse miserável ser.

 

Como você pode ver, o sujeito parece de fato acreditar nesse monte de mentiras que tenta disseminar com esse bilhete. Claro que lembramos quem somos, somos trabalhadores, né gente?!  Incansáveis, podemos cada vez mais! Vivemos como engrenagens de um sistema maior, que, incessante, deixa a todos nós felizes. É claro que não é possível viver fora desse sistema, mas quem é que iria querer?

Temos baixas, sim, mas o que são algumas pessoas meio loucas em meio a tanta normalidade?

Mas acho que não há motivos para grandes preocupações. Em uma sociedade tão avançada e inteligente quanto a nossa, as pessoas não cairiam em uma falsa propaganda de uma “vida melhor”. Além do mais, esse é só mais um lunático que estava sonhando acordado.”

 

Sempre Alerta,

João.

 

TATIANA

 

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