Arquivos diários: 24 de setembro de 2019

Falta de sorte

 

Não gosto dessa palavra, mas não tem outra para usar nessa situação. Tive azar. Na garagem do meu prédio, entre tantos vizinhos simpáticos e agradáveis, minhas vagas são ao lado do casal mais esquisito não apenas do prédio, mas de todo o bairro, provavelmente de toda a cidade. Um de cada lado. Fui premiada.

Não cumprimentam ninguém. Nem eles, nem seus dois filhos adolescentes, que tudo indica estarem crescendo esquisitinhos como os pais. Uma vez encontrei toda a família voltando da missa, os quatro andando juntos numa rua perto de casa. Quis ser amigável, afinal vi aquelas pessoas saindo da igreja, presumidamente imantados de bondade e de amor ao próximo. Acreditei que mereciam essa chance de redenção depois de tantos silêncios embaraçosos na garagem. Longe do território onde somos inimigos achei que a civilidade iria prevalecer. “Boa tarde!”. Ainda esbocei um sorriso. Não houve resposta.

Ao longo dos anos foram inúmeros embates. Era rotineiro o casal me mandar cartas com cópia para o síndico do prédio, sempre me culpando por todos os problemas que seus carros apresentavam. Como eu era amiga do síndico, ele provavelmente rasgava as tais cartas, pois nunca recebi qualquer multa ou advertência.

Um dia recebi um orçamento de uma funilaria, para o conserto de um grande furo na lateral de um dos carros deles. Era um valor alto. Junto, mais uma carta que me acusava de ter provocado o tal furo. Dessa vez tive muito trabalho, preparando uma defesa baseada em fotos do furo, medido com uma trena, para provar que pela altura era impossível a minha porta ter causado aquele dano. O zelador segurou a trena para eu tirar a foto. Seu sapato inadvertidamente apareceu na foto e foi reconhecido, o que lhe valeu uma reprimenda do casal por ter me ajudado.

Coitado do síndico, dessa vez fui eu que levei a carta. Quando a vizinha foi reclamar, ele perdeu a paciência. “Porque a senhora não coloca um belo colchão para proteger o seu carro?” Era uma ironia, mas ela levou a sério. Meu calvário começava aí.

O casal comprou boias, dessas bem largas, usadas para atracar lanchas, para evitar que batam no píer. É importante dizer que meu prédio é antigo, as vagas demarcadas na garagem foram projetadas para carros pequenos. Os carros aumentaram consideravelmente de tamanho, as vagas não. O casal instalou duas boias em cada carro e a partir deste dia apenas consigo sair do meu carro de lado e prendendo a respiração, pois a minha porta quase não tem espaço para abrir.

Vivi conformada por muito tempo, até que um amigo foi me visitar e me incitou. Disse que eu não poderia concordar com aquilo, que era um absurdo, pois se todos no prédio colocassem boias ninguém conseguiria sair dos carros. Que meus direitos estavam sendo violados. Que era assim que as guerras começavam: tinha gente que só pegando numa arma para resolver a situação.

Não quis chegar a tanto, mas armei um plano. Ao lado da vaga da mulher tem uma parede. Voltei mais cedo para casa para chegar antes que ela na garagem. Coloquei meu carro estritamente dentro da minha vaga, porém bem rente à faixa, pois sabia que daquele jeito ela não teria como estacionar. Não haveria espaço suficiente para manobrar. Subi e fiquei (alegremente, confesso) esperando o interfone tocar.

Depois de alguns minutos, o porteiro me ligou a pedido da vizinha. Pedi que lhe mandasse um recado: eu estava dentro da minha vaga e nem que Jesus descesse na terra para me pedir, eu não mudaria o meu carro de lugar. Se ela chamasse a polícia, eles nada poderiam fazer. E dei a minha cartada final: disse que meu carro não sairia daquela posição até que se comprometessem a não usar mais as boias.

Deu certo. Por uma semana, entrei e sai normalmente do meu carro, sem nenhum sofrimento. Depois as boias voltaram. Não, eu não quero viver em guerra. Eu prefiro me apertar.

Vendo pelo lado bom: eu nunca mais posso nem pensar em deixar de fazer regime.

Caminho mais fácil

 

Nem sempre foi assim. Hoje vejo a vida meio poeticamente e acabei me tornando uma pessoa bastante indulgente, tanto com os outros como comigo mesma.

Minhas amigas dizem que uso permanentemente óculos de lentes cor de rosa, que me fazem enxergar a realidade mais agradável e as pessoas melhores do que realmente são.

Se enganam.  Na verdade, minha paciência (ou resignação) existencial é na verdade uma grande preguiça, que se recusa propositalmente a focar nas mazelas da vida.  É uma questão de escolha. Se indignar cansa demais. Não quero perder energia assim.

Aceitar a mão pesada do destino é mais fácil e muito mais leve.

Como é confortável acreditar numa esperança longínqua que um dia ainda poderá acontecer -como um passe de mágica- uma resolução natural para todos os males! Sigo confiante. E por decisão, alegre.

Às vezes, mediante a minha postura, perdem a paciência. ” Tire esses óculos Silvia!!”. Me recuso. Eu gosto de ser como sou. Eu sou preguiçosa.

Brincando de Deus

 

Sempre gostei de ajudar minhas amigas. Digo ajudar romanticamente. É muito divertido juntar casais, dá um certo poder se sentir intercalando vidas, decidindo destinos. É como escrever um roteiro, e depois observar de longe o desenrolar da história que se desenvolve sozinha. O fim fica em aberto, com mil possibilidades de desfecho. Tem coisa melhor?

Confesso que as vezes passei dos limites, manipulando situações, criando estratégias como se o amor fosse apenas um jogo, e eu, uma treinadora minuciosa, que estuda e arma a sedução certeira para a vítima em questão. O pior é que geralmente dava certo.

Certa vez, fui na casa de uma amiga e conheci o seu irmão. Era um sujeito interessante, que descobri estar disponível. Já fui logo pensando nas solteiras que eu conhecia e que seriam compatíveis. Fiz da sua irmã uma aliada. Como não gostava da ex-namorada dele, logo se prontificou a me ajudar a providenciar uma nova cunhada mais aprazível.

Escolhemos a pretendente pelo aspecto físico. Não tínhamos muita opção, dado que o rapaz era muito exigente. Ele sempre se interessava pelo mesmo biotipo. Tinha que ser alta, morena, magra, e o que era mais difícil, cabelos longos e lisos (naquela época não existia escova progressiva). Por eliminação chegamos na Fernanda. Ele era Fernando, o que interpretamos com um sinal, um bom agouro, afinal coincidências não existem.

Descobrir o máximo possível sobre a vítima é sempre fundamental. Assim a irmã me passou um verdadeiro dossiê sobre ele, seus gostos e preferências em todos os aspectos da vida. Tudo o que mais prezava e tudo o que não suportava.

Instruímos muito bem a Fernanda. O rapaz adorava natureza, férias para ele era sempre no campo. Cresceu na fazenda da família e nunca gostou de praia. Não gostava de assistir TV mas era um cinéfilo inveterado.  Conhecia todos os cinemas da cidade e quando viajava, não ia a museus, ia assistir filmes estrangeiros que nunca chegariam no Brasil. Era ateu e zombava da ideia de um Deus que a todos julgava e que lhe parecia severo demais. Acordava cedo para correr, atividade que era a sua verdadeira religião.

Armamos um encontro na casa da minha amiga. Fingimos ser íntimas, três amigas de longa data. Ele sem saber de nada, naturalmente. Durante o jantar, lançávamos a perguntas certas, dando as “deixas” para a Fernanda poder discorrer sobre seus gostos, que na verdade eram opostos aos dele. Adorava praia e não perdia um só dia a sua novela. Tinha alergia à insetos e pavor de cavalo. Ia a missa quase todas as semanas com a sua avó. Rezava toda noite, tinha um time completo de santinhos na cabeceira da sua cama. Fazia balé, mas faltava bastante, era preguiçosa. Adorava acordar tarde nos finais de semana.

No decorrer do jantar me surpreendi com a performance da Fernanda, digna de uma verdadeira atriz. Era nítido que rapaz foi ficando intrigado (e encantado), afinal a amiga da sua irmã era a materialização perfeita dos seus sonhos. Ela nos contou como amava cachoeiras, que ficar no meio do mato era seu maior prazer. Que isto para ela era o verdadeiro céu, já que não acreditava que haveria vida após a morte. Céu, se houvesse, seria uma floresta com cheiro de terra molhada (desse cheiro ela realmente gostava).

O ápice do nosso roteiro foi depois da sobremesa. Conforme combinado, chamamos:                   “ Fernanda, está quase na hora da novela, vamos ver?”. E ela, deu o último tiro, certeiro: “ Esqueceram que detesto assistir TV? Que tal irmos a um cinema?”. Declinamos. Ele rapidamente a convidou, já praticamente apaixonado.

Namoraram por quase um ano. Terminaram antes das férias.

Não foram infelizes para sempre.