Arquivos diários: 14 de outubro de 2015

A Rua Giacomo Puccini

A rua era  pequena, apenas um quarteirão. Lá moravam: Dr. Luizinho, que não era doutor. Tinha na esquina sua farmácia, onde passava os dias atendendo e estudando para quem sabe um dia, vir a ser doutor de verdade.

— Seis casas, encostadas e interligadas pertenciam a mesma família. Todos irmãos. Todos “buona gente”. Nas casas dos irmãos vizinhos, era uma barafunda entre eles sempre gritando. Brigavam e faziam as pazes em alto som, rindo e chorando como bons italianos.

— Duas casas também pertenciam a duas famílias os “nonos”, os “zios” e os primos.

— Outras quatro ou cinco pertenciam a famílias independentes. Além disso havia alguns terrenos vazios. Uma dessas famílias, a do Dr. Argemiro, que não tendo filhos adotou um sobrinho que, por não ter conseguido entrar na faculdade, era obrigado a usar  um burrico pendurado no pescoço. Ele adorava o penduricalho, não considerava um castigo.

— Seu Vassorinha, sua mulher e os filhos,  eram divertidos, mas não repartiam com os vizinhos  as alegrias familiares.

— Havia uma família que por ser hoje diríamos  (gourmands ou gourmets) eram bem gordos. Eram os únicos estrangeiros  (para os vizinhos) uma vez que todos os outros eram “oriundi”! Eram Sr. Fritz Gordo, Dona Frida Gorda e Lu Gorda! Alemães, claro.

Bem, todos vizinhos se conheciam, mas era apenas  “bom giorno” … “boa noite”. E não passava disso. Um ciau e no máximo um sorriso. Não tinham convivência, viviam isolados cada um no seu mundinho.

Mas…Numa certa manhã apareceu na rua um cachorro vira lata até a alma, e a alma de um vira lata é o máximo. Nunca exige nada apenas quer amar e ser amado! Estava bem acabado. Machucado, sujo e cheio de pulgas. Porém era de uma simpatia contagiante, que acabou por conquistar  toda a vizinhança.

Como todos queriam adotar o cão, acabaram por conversar e resolveram fazer uma reunião para decidir o que fazer com ele.

Como vamos chamá-lo?

Reuniões algumas noites para escolher o nome, que viria a ser TANTAN. E que TANTAN decidiria com quem ficar.  Tratado e recuperado, ele escolheu, ser de todos uma vez que andava pelo quarteirão acima e abaixo durante toda noite. Durante o dia dormia embaixo da árvore numa sombrinha gostosa.

– E o que fez TANTAN?

                Dr. Luizinho ficou praticamente o médico de toda a italianada até dos alemães. TANTAN também era seu cliente.

Naquele tempo não havia ladrões, apenas larápios que entravam nas casas para roubar uma galinha ou alguma peça de roupa dos varais.

Mas, na Rua Giacomo Puccini jamais houve um roubo, pois todos os malandros sabiam da ferocidade de TANTAN, o guarda noturno.

Ele era muito engraçado pois tinha lá suas  preferências. Gostava muito de braciolla, mas não comia carne moída. ( Carne moída, devia pensar ele, nem morto). Arroz e feijão algumas vezes.  Gostava é de melancia, vai saber.

Agora, sábado, depois da chegada do TANTAN, a vizinhança se reunia. Era dia de churrasco. Ele era o primeiro a chegar, parece que sabia que era sábado. Amanhecia  na porta do Sr. Fritz Gordo e lá ficava.  Aprendeu até a tomar cerveja. Antigamente cachorro não comia ração, mas sim o que as pessoas da casa comiam

Só ia lá aos sábados, porque penso que não gostava de comida alemã.

Envelheceram juntos, TANTAN e os  amigos da rua. Mas amizade a alegria e o amor que ele trouxe jamais serão esquecidos pelos que  foram premiados com a oportunidade de com ele conviver.  Aquela dinâmica diferente, daquela  rua tão especial:

A Rua Giacomo Puccini.

O LIVRO

Em todo lugar que  ele ia levava o livro. Não era um livro qualquer  era aquele, sempre o mesmo. Na sala de espera do médico lá estava ele lendo o livro. No avião nas viagens curtas e longas, sempre o livro presente.

Nas férias, podia esquecer a mulher em casa, mas não esquecia o livro.

Era um livro diferente.

A começar pelo autor: Giovanni Takaoka Smith Von Bratner Martines da Silva. A gente pensava: – será italiano, ou japonês, americano ou alemão? Mas tem também o Martines… deve ser espanhol… e o da Silva? Deve ser português!

O mistério aumentava quando se lia o nome do livro: OH OH? Mas que pode significar OH?

Ele não mostrava o livro para ninguém. Quando alguém perguntava sobre o livro dizia: —  eu acho que hoje vai chover. Quando insistiam muito, ele falava: — versa sobre as taipas do furor sarilho.

Guardava o livro numa capa de veludo, ficava na sua cabeceira.

Um dia o livro sumiu.  Gritou com sua mulher aonde estava o livro. A mulher respondeu – coloquei na prateleira, junto com os outros livros.

— Como assim? Meu livro junto com outros livros? Não sabe o que ele significa para mim? Ficou sem falar com a mulher o resto do dia.

Para que ninguém se atrevesse abrir o livro, colocou um filme de plástico, igual ao que se usa para alimentos.

Quando ia ler o livro tirava o plástico. Quando terminava, outro plástico. Esta postura, logo despertou a curiosidade de todos. Dizia sua mulher: — Deve ser seu diário, onde ele anotou tudo que aprontou na vida.

Sua filha mais velha tinha outra versão: — são poesias que escreveu para suas namoradas, e o nome do autor, foi um pseudônimo – que ele criou. Seu genro, achava que ele devia ser um nobre e que o livro seria a estória de sua família, que ele jamais conhecera, pois sua mãe, desobedecendo a família, se casara com um pé de chinelo sem eira  nem beira e isso o deixava muito mal, e pensava: — sou meio nobre e meio nadica de nada, mas não queria que ninguém soubesse que ele era o que era. Por isso o mistério!

No trabalho não era diferente. Todo dia ele levava o livro, punha em cima de sua mesa. A secretária dizia: — deve ser um livro de auto ajuda de onde ele tira aquelas regrinhas que ele fala todo dia.

Um dia na casa dele rolou uma vasta feijoada. O primo do Rio veio. A tia  Lili trouxe os dois filhos, e suas namoradas, claro, o Afonso, interesseiro, nunca telefonava para saber se estavam bem, soube  da feijoada, e veio. A filha por sua vez convidou duas amigas da faculdade, e é claro os namorados.

Enfim, a casa estava cheia, de cara rolou uma batida de côco, que estava uma delícia. Antes da feijoada propriamente dita, serviram uns torresminhos, umas batatinhas fritas. Todo mundo foi então para o canto das caipirinhas. Tinha de tudo: de limão, de frutas vermelhas, lima da pérsia e de tangerina, esta não sei  porque, foi a predileta. O anfitrião, dono do livro, experimentou todas. Quando a feijoada finalmente foi servida aconteceu o inevitável, ele deitou no sofá e apagou. Dormia tão profundamente que nem ouviu a tia Carminha cantar (sorte dele). Nem tomou conhecimento quando o baile começou com música altíssima, que se  ouvia da rua.

Foi então que alguém sugeriu: — vamos ver de que se trata o livro? Animados, descontraídos pelo álcool resolveram desvendar o mistério, apesar dos protestos de sua mulher. Tiraram a capa de veludo, o plástico de proteção e abriram o livro. Para surpresa geral, era a Bíblia, com algumas frases sublinhadas: “amai-vos uns aos outros, como eu os amei”. “Não julgueis para não seres julgados”, “o reino de Deus…

Colocaram o livro de volta direitinho no lugar onde estava.

Desse dia em diante, ele passou a ser mais respeitado e admirado.